top of page

CHEGA DE LAVAR AS MÃOS!



28/03/2020

Texto produzido por Gilceley Santos

Não podemos fazer tudo

Mas fazemos tudo que podemos?

Impossível sabermos em que direção estamos indo.

Quais devires nos atravessarão, para onde os mesmos devires nos arrastarão. Mas é irrefutável que a cada acontecimento civilizatório desta dimensão uma parcela considerável dos sujeitos deixe para trás uma espécie de exoesqueleto. Essa capa dura que no caso de humanos é feita de sentidos e saberes culturais que carregamos e que embora pareça nos proteger por um tempo se não soltamos a cada vez que acontecimentos exigem um devir, o corpo adoece sem poder ir adiante.

Exoesqueleto ou ainda nossas camisas de força,

que no nosso caso vestimos voluntariamente.

“A significância e a interpretação tem a pele tão dura, elas formam com a subjetiva ação um misto tão aderente que é fácil acreditar que se está fora disso ao passo que se continua secretando isso.” (Deleuze/Gatarri).

Ontem ouvi :

” - Agora teremos que fazer o que sempre deveríamos ter feito: cuidar melhor da nossa higiene da nossa casa.

A falta de Higiene provocou essa desgraça no mundo.

Vamos aprender o básico: lavar as mãos”.

Não fosse minha condição de escuta talvez não tivesse suportado em silêncio, até que algo mais pudesse surgir para além dessa fala tão distante da vida real.

É claro que ao continuar sua fala ouvimos outros ditos como:

“- Mas não sei porque, lavo a mão o dia inteiro e continuo me sentindo sujo e com medo de me infectar,

mesmo estando sozinho em casa”.

A pulsão não se cala não é ?

A mesma porta que fecha é a que abre para o inconsciente que esta ali , “- em espera na área como algo de não nascido”. – (JL)

E seguimos nos perguntando de que sujeira então se tratava

de que vírus de que limpeza.

E se lavar as mãos nesta outra dimensão onde tudo se origina não possa ser neste momento além de um ato insuficiente também indevido.

Algo se abriu para uma outra “diz-mansão do dito” ( JL sem 11) ,

podendo se achar em seu lugar de incomodo não casual mas sim, consequente de um lavar as mãos depressa demais.

Na contramão temos a direção da cura que visa justamente o contrario. Propõe a “Retificação do sujeito com o real”, com o inconsciente. A ideia é tomar as rédeas do acontecimento, encontrar suas origens e responsabilizar-se pela limpeza que neste caso não é das mãos, mas dos atos presos para que possam se tornar atos libertos de tanta imundice que nos adoece e há tanto tempo.

A doença é muito, muito, muito maior. Esta ainda invisível.

O perigo é o de nunca conseguirmos viralizar nada que não seja do mesmo modo exclusivo e excludente.

“Nunca faltará algo. Não há do que se lamentar. É o eu que se encontra em falta ética, face ao que o corpo ou o espirito pode.

Não posso, pois, dizer que estou privado de algo melhor, mas que estou ou estivesse me privando de algo melhor.”

JPerci Schiavon - 63 / Prag. Pulsional .

A mídia superficial insiste em dizer sobre os benefícios do estar em casa, não discordo que algo nisso possa ser valioso. Como é o caso de famílias que se encontram mais do que nunca forçadas ao convívio, mas seria inocente pensar que apenas alegrias possam surgir dessa condição. Óbvio é que a proibição do distanciamento familiar necessária em tempos comuns também fará eclodir o que o tempo de distração que o dia-a-dia promove como o trabalho, o estudo, etc, pode trazer a tona. Pode levantar também as reais condições das famílias e que nem sempre são boas de se constatar. Por outro lado pode haver nessa reclusão um momento propício para resolver conflitos existentes, há tempos deixados de lado, e que diante da continua convivência sem distração ou com menor distração e com alguma coragem de enfrentamento, até tenham a chance de retomar seu lugar de importância também.

Mas isto é o mínimo que nos cabe. Higiene pessoal, levantamento de conflitos já pré existentes e agora sem outra saída senão enfrenta-los, cuidados especiais com os mais velhos, aproximação entre pais e filhos como disse anteriormente nem sempre obtendo os resultados esperados, mas mesmo assim podendo emergir como um enfrentamento necessário que talvez a situação obrigue a abrir.

Mas sabemos que a amplitude dos fatos neste casoé bem maior, o buraco é sempre bem mais embaixo, e lavar as mãos não vai resolver a nossa derrocada existencial que não começou agora e nem tão pouco terminará agora também.

É preciso parar de lavar as mãos quanto ao que causou a existência de uma doença universal nesse tempo que agora é apenas revelada em sua deriva sintomática, mas que há muito vem se desenvolvendo e nos adoecendo de muitas outras maneiras.

Somos um mundo mesquinho capaz até de ver culpados fora de si mesmo, um mundo que acredita que o problema é do outro!

O Curioso é que as grandes revoluções civilizatórias costumam partir sempre do invisível, do pequeno, do inesperado, do improvável, e por isso mesmo são sempre indomáveis.

Sem fronteiras, sem raça, sem gênero, sem classe social que possa impedir a transmutação de recalque em sintoma.

Estamos todos infectados e não será lavando as mãos mais uma vez como sempre, de Pilatos à Bozonaros universais, ou, mesmo as nossas próprias que nos livraremos da extinção que obviamente não será da terra, mas dos pobres bichinhos humanos que nela habitam temporariamente.

Agora então procuramos colocar nossos corpos em fuga.

Mas sabemos do que fugimos?

Lembro de Giorgio Agamben propondo uma vida Outra

“- Viver a vida como uma iniciação. Mas a que? Não à uma doutrina, porém à vida mesma e a sua ausência do mistério” .

A hipótese é que o pânico em muitas situações venha daí.

O que paralisa os corpos não é o medo do vírus ( este apenas exige precauções qualquer manual explica ).

O que pode paralisar é o pânico de termos que viver uma vida real sem mistérios, pois, ao entender o que a vida nos pede estaríamos diretamente implicados. A compressão do que a vida nos diz sem mistério exige muito mais do que nossa diária distração com trabalho com entretenimento com drogas com sexo reduzido a descarga etc. Tudo isso nos leva a uma desenfreada produção:

de objetos para termos mais para acumular mais para nos distrair mais para nos entorpecer ainda mais e assim mantermos mãos limpas sobre almas adoecidas, afinal, é o que aparece nas fotos e fotos/imagens são o que estão valendo na nova ordem hoje em dia e assim que sabe, terminar em vida besta sem fim,

mas também sem nunca ter sequer começado.

“ Mas quem quer que sofra desses diferentes naufrágios não é inocente de sua sorte. - J. Perci Schiavon ( pg 141 ) Prag.Pulsional

Mais uma vez a proposta é de enfrentamento. Sem romantizar tamanho sofrimento pois sabemos o quão difícil será, mas acreditando que o mundo saíra dessa “se” não paralisar em pânicos na tentativa de manter-se no mesmo modo menor de vida, sempre confundido entre poder e potência, fraqueza e fragilidade.

Lembro David Lapoujade em sua límpida fórmula ao bem dizer:

“- Não permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força, porém ter a força de estar à altura da própria fraqueza” ,

( que entendo como fragilidade ).

Para mim esta é uma fórmula magica!

Isso se pudermos pegar com as mãos nossa fragilidade, sermos melhores cuidadores da vida após uma lição tão contundente como esta que nos foi dada pelo “vírusábio”. ( Viro sábio )

(Curiosamente há anos estamos ouvindo pessoas felizes por estarem “viralizando” na internet ) .

Como talvez já saibam, a palavra vírus vem do Latim e significa fluído venenoso. Embora não neguemos a porção mortal que pode e vem interrompendo vidas concretas, também podemos pensar sobre outro ponto de vista, o da Pulsão vital. Deste lugar pode-se pensar que o fluído venenoso que se teme é o que pode ser mortal para o ego e não para os corpos. Para aquele que se acredita livre do perigo lavando as mãos.

Neste lugar pode-se pensar que há um outro que de fato está com medo de morrer, que tem pânico diante da impotência de se pensar tendo de produzir formas diversas de ser e existir.

O que seria uma vida Real?

Talvez uma vida sempre pronta a atualizar-se.

Pronta para se tornar outra, como diz Fernando Pessoa,

para Outrar-se”.

É inegável o sofrimento diante das perdas dos amores familiares, da estabilidade de emprego, dos projetos, das conquistas financeiras que custaram tanto a tantos, das pseudo garantias de futuro estável, diante da visibilidade (agora estampada diariamente e que antes ficava para muitos velada) da fome de outros ao nosso redor, da vulnerabilidade de tantos que desprovidos de alternativa minimamente suficientes para a sobrevivência agora não podemos mais nos esquecer, da violência que pode brotar do terror do pânico diante do nonsense, enfim, há sempre uma pena e um luto proporcional de tristeza imensurável nestas experiências.

É a aparição do trágico que vai exigir de todos que possam

grande delicadeza no acolhimento do que em nós esses fatos repercutirão, talvez muito adoecimento muita dor.

Mas, será que podemos passar para outra dimensão de entendimento?

Aquela que exige ir para além de si mesmo?

A dimensão onde o de que se trata não é apenas da nossa vida mas sim de “UMA VIDA” que mesmo sem nós sempre persevera.

Hoje na terra, somos cerca de 7 bilhões 165 milhões de habitantes.

Talvez seja mesmo esse amargo remédio a nossa única chance de passarmos para um outro patamar de vida. Talvez alguns milhões de nós tenham que tombar para que outros bilhões restantes tenham que passar por esta prova real e aprender com ela que há uma valoração/ordenação Outra.

Que não somos nós quem decidimos o destino de “uma vida”, que esta direção já é originariamente dada, que embora Singular é Impessoal, embora Abstrata é Real que embora Simples é muito Refinada e que depende de estarmos à sua altura a nossa perseverança .

Kafka em “Carta a Oskar Pollak”

Nos oferece a seguinte definição para uma leitura que valha nosso tempo:

“ Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o estamos lendo?... Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para a floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um achado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós”.

Penso que vale também para este momento.

Talvez precisemos fazer esta leitura agora: dura, sofrida, e com a pele para um apreender custoso mas sem o qual não estaremos a altura de seu ex-sistir.

Talvez o vírus-veneno fluído que prova a imaginária existência de fronteiras esteja na dose certa para quem sabe poder fazer nascer em nós a cura de nossa paixão pela ignorância. Que como sempre, desde sempre esteve aqui, mas que de olhos vestidos e ouvidos moucos nunca tantos veriam tanto em tão pouco tempo.

Para “gozar do saber é preciso empenhar a própria pele”.

Mesmo não acreditando em um final feliz ( mesmo porque nem acredito em final, prefiro acreditar em continuidade mesmo que eu não esteja aqui ), mas mesmo assim, sem final feliz ou infeliz penso que a continuidade pode sim partir de outro degrau.

Quando enfrentamos a segunda guerra mundial por falta de mãos de obra as mulheres foram admitidas em trabalhos que antes eram permitidos apenas para os homens.

Longe ainda de ter a condição de respeito merecido, ainda assim, é inegável o avanço que a força de trabalho das mulheres teve seu devir, colocando-as em outro patamar de direitos. Hoje ainda há muito para ser conquistado, mas foi diante do terror vivido na época que o devir “mulher fora de casa” pode existir. A força se abriu para uma nova forma de convivência com a mulher que inegavelmente hoje ocupa direitos de existência dos quais nunca mais se abrirá mão. Foi um avanço irreversível.

Assim, acredito ser este momento mais um momento histórico de terror e angústia, porém, se nos aberramos diante do que nos acossa talvez seja porque ainda não tenhamos entendido o quanto somos responsáveis pelo estado de coisas que nos acontece.

Cabe a cada um de nós parar de lavar as mãos e tomar para si a parte que nos cabe.

“- Estritamente falando, a vida é aquilo que a luta tiver produzido”.

Achille Mbembe

bottom of page